Hoje foi um daqueles dias que vale a pena ser vivido. Sabe aquela sensação que você tem quando chega em casa à noite de estar realizado sem saber bem o motivo? De pensar que era exatamente isso que você queria desde o começo? O chão desaparece, o corpo fica leve, a cabeça esvazia. Tentarei resumir esse frenesi em uma simples frase: FAZER O QUE SE GOSTA! Em meio a um turbilhão político que vivemos em nosso país onde culpados não são punidos, corruptos não são presos e políticos não são outra coisa senão políticos está cada vez mais difícil exercer nossa profissão. A medicina no Brasil está muito próxima da extinção! Pelo menos da maneira que nós médicos a exercemos. Somos os mais novos bodes expiatórios do atual governo. Nada funciona na saúde por culpa dos médicos. Gananciosos, dinheiristas, petulantes, desumanos. Para ficar apenas no politicamente não-ofensivo. Vejo muitos colegas descontentes com a atual situação do país e preocupados com o futuro da profissão. É tanto Mensalão, tanta Petrobras, tanto Mais Médicos que acabo esquecendo o real motivo de ter escolhido a medicina (e a psiquiatria em especial) para me acompanhar pelo resto dos dias da minha vida. Hoje voltei a lembrar. Laura me fez lembrar.
Esta delicada menina de estatura acima da média para seus 16 anos e peso muito abaixo foi-me apresentada três meses atrás em um serviço de Pronto-Atendimento. Estava contida em uma maca na qual revirava-se incessantemente. Seus braços estavam cobertos, mas pude perceber cortes profundos que não lembravam em nada os das pacientes histriônicas que costumam se auto-mutilar (estes geralmente superficiais). Seu cabelo tingido de vermelho cobria boa parte de seu rosto. Era possível ver apenas um dos olhos pintados de um preto marcante. Sentei ao lado da cabeceira de sua cama e perguntei o que estava acontecendo. Laura não respondeu. Olhou fixamente para mim, depois para quem imaginei ser sua mãe e em seguida baixou a cabeça. Entendi seu recado. Solicitei, em seguida, que seus familiares nos deixassem a sós. Ao fundo ouvia-se apenas o barulho do pigarro de uma senhorinha que esforçava-se com seus cansados braços para erguer-se na cama. Acompanhei sua sombra sobre meu sapato até ela conseguir sentar-se. Laura olhou para mim e apontou para sua mesa de cabeceira. Perguntei o que ela queria. Não disse nada. Apenas apontava como uma criança que pede o biscoito escondido no alto do armário da cozinha. Decidi escolher um entre tantos objetos que povoavam sua mesa. Apanhei um caderno e um lápis que repousavam ao lado de uma foto autografada da Demi Lovato quando Laura confirmou com os olhos que eu havia escolhido certo. Começou a escrever. A medida que ia rabiscando o papel girava-o para o meu lado como se pedisse que eu acompanhasse seu acelerado pensamento. Sublinhou uma frase bem no centro da folha que explicava o motivo de estar ali. Laura tentara se matar após ouvir que os pais iriam se separar. O restante do texto dava seqüência àquele dia. Correu imediatamente para o banheiro e cortou os dois antebraços com a gilete do pai. A mãe encontrou-a desacordada e a trouxe a emergência do hospital. Desde então perdera a voz. Nada falava. Com ninguém. Disse a ela que imaginava o tamanho de seu sofrimento, mas que talvez fosse necessário entrar em contato com sua dor “interna” para não precisar substituí-la pela externa. Laura escreveu no pequeno espaço que ainda restava na folha enquanto as lágrimas caiam sobre o caderno: “POR FAVOR ME AJUDA”.
Saí de lá com dez quilos nas costas. E um milhão de pensamentos. Sei bem como funcionam pacientes como Laura. São impulsivos, de difícil acesso e muito instáveis. Com Laura não seria diferente. Mas era preciso tentar. Afinal de contas por que diabos faço o que faço? Tentar é tudo o que me resta.
Ao longo da semana recebi mais duas ligações dos enfermeiros relatando que Laura novamente havia se machucado e continuava sem se alimentar, pois acreditava estar obesa e feia (era possível visualizar suas clavículas como em um livro de anatomia tamanha era sua magreza e mesmo assim Laura irradiava beleza). Ficou mais 25 dias internada até ser liberada.
Hoje foi dia de consulta. Há duas semanas Laura não se corta. Voltou a se alimentar. Parece outra pessoa. Tem planos para o futuro: voltar a estudar e ser modelo. Está preocupada que as cicatrizes nos braços prejudiquem sua carreira. Pensou em tatuá-los. Sorri ao falar isso. Agradece minha ajuda e chora ao lembrar tudo que passou. Despede-se prometendo nunca mais conversar comigo dentro de uma sala de emergência.
Volto para casa com dez quilos a menos. Nunca imaginei que conseguiria perder tanto peso em tão pouco tempo. Estou certo que Laura ajudou mais a mim do que eu a ela. E é essa certeza que impulsiona o nosso trabalho. A medicina permite isso. A psiquiatria ainda mais. Agradeço a menina de olhos escuros e cabelos vermelhos por me fazer lembrar o que a vida tinham me feito esquecer.
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