Demi Laura

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Hoje foi um daqueles dias que vale a pena ser vivido. Sabe aquela sensação que você tem quando chega em casa à noite de estar realizado sem saber bem o motivo? De pensar que era exatamente isso que você queria desde o começo? O chão desaparece, o corpo fica leve, a cabeça esvazia. Tentarei resumir esse frenesi em uma simples frase: FAZER O QUE SE GOSTA! Em meio a um turbilhão político que vivemos em nosso país onde culpados não são punidos, corruptos não são presos e políticos não são outra coisa senão políticos está cada vez mais difícil exercer nossa profissão. A medicina no Brasil está muito próxima da extinção! Pelo menos da maneira que nós médicos a exercemos. Somos os mais novos bodes expiatórios do atual governo. Nada funciona na saúde por culpa dos médicos. Gananciosos, dinheiristas, petulantes, desumanos. Para ficar apenas no politicamente não-ofensivo. Vejo muitos colegas descontentes com a atual situação do país e preocupados com o futuro da profissão. É tanto Mensalão, tanta Petrobras, tanto Mais Médicos que acabo esquecendo o real motivo de ter escolhido a medicina (e a psiquiatria em especial) para me acompanhar pelo resto dos dias da minha vida. Hoje voltei a lembrar. Laura me fez lembrar.
Esta delicada menina de estatura acima da média para seus 16 anos e peso muito abaixo foi-me apresentada três meses atrás em um serviço de Pronto-Atendimento. Estava contida em uma maca na qual revirava-se incessantemente. Seus braços estavam cobertos, mas pude perceber cortes profundos que não lembravam em nada os das pacientes histriônicas que costumam se auto-mutilar (estes geralmente superficiais). Seu cabelo tingido de vermelho cobria boa parte de seu rosto. Era possível ver apenas um dos olhos pintados de um preto marcante. Sentei ao lado da cabeceira de sua cama e perguntei o que estava acontecendo. Laura não respondeu. Olhou fixamente para mim, depois para quem imaginei ser sua mãe e em seguida baixou a cabeça. Entendi seu recado. Solicitei, em seguida, que seus familiares nos deixassem a sós. Ao fundo ouvia-se apenas o barulho do pigarro de uma senhorinha que esforçava-se com seus cansados braços para erguer-se na cama. Acompanhei sua sombra sobre meu sapato até ela conseguir sentar-se. Laura olhou para mim e apontou para sua mesa de cabeceira. Perguntei o que ela queria. Não disse nada. Apenas apontava como uma criança que pede o biscoito escondido no alto do armário da cozinha. Decidi escolher um entre tantos objetos que povoavam sua mesa. Apanhei um caderno e um lápis que repousavam ao lado de uma foto autografada da Demi Lovato quando Laura confirmou com os olhos que eu havia escolhido certo. Começou a escrever. A medida que ia rabiscando o papel girava-o para o meu lado como se pedisse que eu acompanhasse seu acelerado pensamento. Sublinhou uma frase bem no centro da folha que explicava o motivo de estar ali. Laura tentara se matar após ouvir que os pais iriam se separar. O restante do texto dava seqüência àquele dia. Correu imediatamente para o banheiro e cortou os dois antebraços com a gilete do pai. A mãe encontrou-a desacordada e a trouxe a emergência do hospital. Desde então perdera a voz. Nada falava. Com ninguém. Disse a ela que imaginava o tamanho de seu sofrimento, mas que talvez fosse necessário entrar em contato com sua dor “interna” para não precisar substituí-la pela externa. Laura escreveu no pequeno espaço que ainda restava na folha enquanto as lágrimas caiam sobre o caderno: “POR FAVOR ME AJUDA”.
Saí de lá com dez quilos nas costas. E um milhão de pensamentos. Sei bem como funcionam pacientes como Laura. São impulsivos, de difícil acesso e muito instáveis. Com Laura não seria diferente. Mas era preciso tentar. Afinal de contas por que diabos faço o que faço? Tentar é tudo o que me resta.
Ao longo da semana recebi mais duas ligações dos enfermeiros relatando que Laura novamente havia se machucado e continuava sem se alimentar, pois acreditava estar obesa e feia (era possível visualizar suas clavículas como em um livro de anatomia tamanha era sua magreza e mesmo assim Laura irradiava beleza). Ficou mais 25 dias internada até ser liberada.
Hoje foi dia de consulta. Há duas semanas Laura não se corta. Voltou a se alimentar. Parece outra pessoa. Tem planos para o futuro: voltar a estudar e ser modelo. Está preocupada que as cicatrizes nos braços prejudiquem sua carreira. Pensou em tatuá-los. Sorri ao falar isso. Agradece minha ajuda e chora ao lembrar tudo que passou. Despede-se prometendo nunca mais conversar comigo dentro de uma sala de emergência.
Volto para casa com dez quilos a menos. Nunca imaginei que conseguiria perder tanto peso em tão pouco tempo. Estou certo que Laura ajudou mais a mim do que eu a ela. E é essa certeza que impulsiona o nosso trabalho. A medicina permite isso. A psiquiatria ainda mais. Agradeço a menina de olhos escuros e cabelos vermelhos por me fazer lembrar o que a vida tinham me feito esquecer.

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Segunda-feira nunca mais!

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Segunda-feira nunca foi um dia fácil. O início da semana geralmente tem destas armadilhas. O despertador que insiste em tocar às sete da madrugada, o café da manhã no elevador após um despertar tranquilo com o sol nas bochechas, o bom-humor dos motoristas que nos ensinam novos idiomas em uma avenida movimentada, a receptividade calorosa do chefe que cobra os mesmos relatórios da semana passada. Enfim, um show de horrores! Mas esta segunda-feira foi diferente. Fantasmagoricamente diferente! Não teve sol, não teve trânsito, não teve chefe. Minha segunda chegou de transportadora! Bateu saudade das anteriores…
Acordei próximo das sete horas em função do despertador interno que insiste em tocar mesmo quando o externo não está programado para tal função. Aproveitando o inesperado despertar dirigi-me até o banheiro para equilibrar alguns líquidos corporais que já em sonho buscavam uma satisfação para retornar o quanto antes ao sono reparador das manhãs de segunda. Afinal era meu dia de folga. Era. Quando percebi estava no meio da sala de estar cercado por milhares de caixas de papelão. Tudo o que um dia foi a minha casa estava dentro daquelas caixas. Veio-me um pensamento súbito: estou sendo assaltado! Minha mente sempre funcionou assim. Em um primeiro momento é a desgraça que a invade: assalto, agressão, acidente, doença, atropelamento, morte. Após passado alguns minutos ela me permite perceber que não será o nosso fim. Pelo menos não agora! Havia escutado passos na noite anterior, porém julguei ser no andar de cima. Teria me equivocado? Poderia o ladrão ter passado a noite encaixotando minhas coisas? Será que ele havia me poupado até agora para um último pedido? E qual seria? “Leve tudo, menos meu iPhone!”, “Meus Picassos são réplicas”, “Mate o vizinho de cima que esconde diamantes na caixa da descarga”. Talvez não funcionasse. Aos poucos fui observando que meus pertences estavam perfeitamente em ordem dentro das caixas divididos inclusive por ambientes da casa e aí sim tive certeza que estava lidando com uma quadrilha especializada. Antes de atacar utilizando meus dotes capoeiristas (havia feito três meses de aula na adolescência quando precisei abandonar por dificuldades peculiares de alongamento) precisava acordar. Fui me aproximando vagarosamente, para não levantar nenhuma suspeita, da caixa onde estava a embalagem de café para reagir àquela situação quando ouvi uma voz que parecia vir da cozinha. “Não toca nisso!”. “Oh meu Deus!!!” pensei separando as sílabas mentalmente. Estava em um misto de ilusão e realidade. Não tinha certeza se aquilo estava realmente acontecendo ou era fruto de uma noite regada a Budweiser. Resolvi me certificar. “Socorro, ladrão! Pega o sem-vergonha” gritei imaginando ser salvo pelo justiceiro do sono que me desperta sempre em momentos assustadores (principalmente aqueles em que preciso fugir de meu assassino, mas minhas pernas não me obedecem). “Que isso guri. Tas incorporado?” perguntou minha sogra confirmando-me que não estava sonhando. “Marquei a mudança para hoje aproveitando que é teu dia de folga”. “Oh meu Deus!!!”, pensei novamente, sem separar as sílabas e com sangue nos olhos! “Chegaram” disse ela abrindo a porta para uma equipe de homens fardados de azul e branco que foram invadindo minha casa. “Irmãos Transportes a seu dispor”. Senti gosto de malte na garganta quando ouvi isso. Um grupo dirigiu-se ao meu quarto onde ainda repousava minhas vestes noturnas e algumas garrafas de cerveja vazias da noite anterior. O outro, começou a desmontar tudo o que se encontrava fora das caixas e não se mexia. Sofá, cama, roupeiro, armário, geladeira, fogão, máquina de lavar. Minha sensação era que eu também seria desmontado a qualquer momento e por isso resolvi me movimentar e gritar: “Ninguém toca na televisão!!”. “Não reparem. Ele não acordou bom hoje” disse minha sogrinha querida fazendo-me sentir um tanto quanto retardado. A operação desmanche demorou cerca de 40 minutos. Olhei para os lados e não vi mais nada. Era apenas eu, meu pijama bege listrado e uma Marie Claire da Carolina Dieckmann atirada onde antes ficava o móvel do telefone. “Te mexe guri. Já estamos indo”. “Indo para onde?” perguntei. Desta vez fiz questão de me impor por questão de honra. “Ora para onde? Para o apartamento novo. Já estão te esperando para montar o móvel do banheiro”. “Senhor, por que me abandonastes justo em uma segunda-feira?” pensei quase me ajoelhando no único tapete que restara na sala.
E lá fui eu às 10:00 da manhã de uma segunda-feira vestido com uma calça de abrigo, que por sorte ficou caída atrás do Junker da área de serviço, a parte de cima do pijama e meu chinelo do Grêmio que foi possível salvar, pois estava nos meus pés para montar o maldito móvel. Deus castiga. Eu sei. Nunca mais reclamo da minha segunda-feira.

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A matemática é exata

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15:45 de uma tarde que insistia em não passar. Cláudia, minha nova paciente, havia desmarcado seu horário das 15h na noite anterior em virtude de um mal estar após um passeio de barco com o noivo. Enrico, meu paciente das 16h, filho de uma grande amiga de infância, avisou-me por mensagem de texto, minutos antes de seu horário que não compareceria por motivo de força maior. Força maior? Poderia meu paciente ter sido levado por um inesperado Tsuname dos Pampas indo parar ao lado do cargueiro Rainha do Mar no Porto de Rio Grande? Talvez um tornado da linhagem Katrina-Sul tenha o arrastado para um local distante do consultório impedindo que chegasse a tempo para consulta? Ou quem sabe um meteorito oriundo da Galáxia Gauchix caíra no quintal de sua casa carbonizando Harold, o motorista que costuma trazê-lo às consultas? Estes sim seriam motivos de força maior!!! Deixemos de lado as improváveis possibilidades. Quero ater-me no momento exato entre estas duas horas livres do meu dia cada vez mais raras. A carga de trabalho que eu, você e o entregador de água carregamos nos ombros é assustadora! Somos devorados diariamente pelo gigante e assustador Tiranossauro Capitalex. Não há como escapar do Parque! Início de carreira é quase regra. Objetivos discretos, carga horária limitada, poucos clientes, ginástica três vezes por semana e almoço no domingo com a família. Dois meses depois já estamos com uma filial no município vizinho com entrega de água 24 horas incluindo domingos e feriados em função do grande número de clientes interessados em nossos serviços. Ginástica no Vida e Saúde aos sábados pela televisão. Almoço apenas. Quando der! Tudo em prol de mais dinheiro e felicidade. Duas palavrinhas que não combinam! Opa, gritou seu Rui no sofá da sala lendo o texto agora. Será que eu entendi direito? Esse maluco está querendo me dizer que mais dinheiro vai me deixar infeliz? Sim. Exatamente o que o maluco disse. Vamos com calma seu Rui. Tentarei explicar-me. Vejo cada vez mais pessoas trabalhar horas a fio para aumentar não mais do que 20-30% do orçamento mensal e deixar escapar como argila entre os dedos do artista a tão procurada felicidade. O tempo se tornou nosso pior aliado. Mais dinheiro menos tempo. Menos tempo menos felicidade. Isso todos concordam. Poderíamos com uma simples conta matemática isolar mais dinheiro de um lado e passar menos tempo para o denominador da fração menos tempo x menos felicidade. Cortaríamos menos tempo com menos tempo que resultaria em, pasmem: MAIS DINHEIRO = MENOS FELICIDADE! “A matemática é exata, meus filhos” diria minha saudosa professora de aritmética do colegial (que não era minha mãe nem de nenhum de meus colegas). Ao contrário do que pregava, dona Beatriz trabalhava arduamente dia após dia como se desacreditasse neste simples cálculo que ela mesmo ensinava. Assim como a grande maioria de nós. Isolamos a todo custo o mais dinheiro não importando o que cortaremos na divisão final. Incrível não? Nem tanto. Para tristeza dos socialistas e matemáticos de plantão não há como lidar com essa questão com um simples cálculo matemático. Há emoções ocultas por trás do dinheiro que a própria razão desconhece. Sucesso, mulheres, fama, mulheres, poder, mulheres e, em alguns casos, mulheres para citar apenas algumas. “O ser humano é complicado meu garoto”. É o que costumo ouvir de meu vizinho, o Sr. Ludovico, de 75 anos que passa os dias sentado em sua confortável cadeira de praia na sacada de seu apartamento de não mais do que 70m2 a olhar não sei o que durante as 24 horas de seu dia. Dono de uma fortuna incalculável, perdeu tudo após um investimento mal calculado. Segundo Carla, sua filha caçula, o pai nunca foi tão feliz. Passa os domingos com a neta que mal viu crescer e chora contando histórias à noite para ela. “Antes, não tinha tempo para nada. Era só trabalho e no tempo livre mais trabalho” diz ela. É seu Ludovico. Algo me diz que a matemática pode estar certa. Quem sabe um dia com meus 75 anos possa modificar essa maneira dinheirista de pensar. Ou então quando perder tudo após investir em ações do Eike Batista. Agora não posso. Preciso chamar Júlia, minha paciente das 17:00.

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ET, telefone, minha casa

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“Guguti? É o guguti momoso? Onde ta o gutiguti da gutiguta?”. Por favor não se assustem. Pode parecer que estamos presenciando o exato momento da abdução de seres humanos do Planeta Terra por meigos jupiterianos, mas é apenas uma conversa entre duas pessoas (pelo menos uma delas assemelhava-se bastante a uma pessoa…). Cabelo escuro, comprido, dois olhos e calça jeans da Colcci. Sim, sem dúvida era uma humana! A menina que aparentava uns 18 anos falava ao celular a minha frente na fila do banco. Nessa época do mês é sempre igual: pessoas se aglomeram nas agências bancárias para quitar dívidas que foram contraídas nos 29 dias anteriores. É extremamente interessante e curioso o que acontece nas filas dos bancos. Já repararam? Pessoas de várias origens, credos e etnias juntas em um ambiente fechado com não mais do que 350m2 de área construída cercado por seguranças fortemente armados que na grande maioria do tempo passam resolvendo problemas de travamento da porta giratória. Todos em busca de um só objetivo: ver sua senha no monitor vermelho! Com cada vez menos atendentes e mais clientes, o piscar do seu A26 é como conseguir a passagem para o portal da Caverna do Dragão. É possível, mas sempre aparece um unicórnio para atrapalhar na última hora… Neste dia, estava eu plantado na fila por motivo de pouca organização e menos ainda de planejamento financeiro quando me deparei com essa conversa de outro mundo. ” Vou tê que deligá poque vão me chamá, tá momozudo?”. Glória a Deus nas alturas e ao bancário da mesa 4 que apertava o botão para a próxima senha. Mais alguns minutos de espera e obrigaria-me, como médico, a intervir nas vias respiratórias deste ser animado no intuito de protegê-la do que parecia ser um pródromo de um estado de mal epiléptico! Este diálogo lhes soa familiar? Estou certo que sim. Existe uma regra que diz que todos, sem exceção, regredirão alguns anos em maior ou menor grau em algum momento da vida conforme a necessidade. Eu diria que quanto maior o trauma (neste caso estar apaixonado) mais próximo do útero ficamos. Lembro certa vez de uma paciente que conversava com seu noivo em uma língua que ainda não tinha sido inventada, que remontava às origens da civilização (não conseguirei reproduzi-la aqui por falta de símbolos!). “Sei que toda vez que ele não fala desse jeito comigo é por que algo não está bem”. “Agradeça por ele ainda falar contigo criatura!”, pensei, mas preferi não fazer conexão com a palavra falada como diversas vezes acontece no decorrer dos meus dias com os pacientes… Detendo-me nas teorias psicanalíticas, diria eu que a necessidade de regredir algumas etapas da vida nos dá garantias de sermos cuidados, de não sermos abandonados assim como funciona com os bebês. Todos em prol da pegajosa dependência eterna! Psicanálise ou não, o que sei é que não há cristão que agüente conviver com um descendente em primeiro grau dos marcianos todos os dias de sua vida. Talvez por isso a paixão não dure mais do que 18 meses para homens e 36 meses para as mulheres, segundo pesquisadores americanos (reparem na cilada temporal em que nós homens estamos metidos!). É prudente ter um fim, até para evitar enfileirar as delegacias com queixas de assassinatos em massa!
Antes de ouvir minha senha na mesa 5 vi passar um magricelo com o rosto infestado de espinhas em direção a menina interplanetária que imaginava eu ser o tal Guguti Momoso! Pensei em oferecer ajuda de alguma maneira, talvez gritando “Fuja companheiro, essa tortura não durará mais que um ano e meio!”, mas resolvi me abster. Já passava das 11h e ainda precisava chegar em casa para preparar o almoço para minha noiva coisa querida, tchutchuca lindona!!!

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Cabeça de capacete!

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” Vou de carro, está decidido!”. ” Por que vir de carro se tu podes vir de ônibus?”. “Por que ir de ônibus se eu posso ir de carro?”. ” Por que vais gastar menos, te cansar menos, te arriscar menos, te estressar menos…” (Já estava arrependido de ter estimulado tantas possibilidades de resposta…). E assim iniciou meu feriado de Páscoa, em meio a uma conversa mais acalorada sobre o meio de transporte ideal para minha locomoção até a cidade onde Luiza, minha agora noiva, reside nos últimos 14 meses. Iniciamos a partir daí um diálogo sem fim. “Vem de ônibus e para de complicar!”. Olhando por esse ângulo realmente pareceria muito mais atraente percorrer os 300 km da viagem assistindo “Cruzeiro das Loucas” confortavelmente reclinado a 120 graus em uma poltrona Gold das linhas terrestres Embaixador. Poderia dormir prazerosamente nestas 3 horas de viagem, acabar de ler A Cidade do Sol, de Khaled Hosseini, que há 6 meses luto para sair da página 25 ou então apenas curtir a bela paisagem de rolos compressores e retro-escavadeiras na pista em virtude de uma obra de duplicação que não tem fim… Mas não! Eu queria ir de carro. E quando coloco uma coisa na cabeça, companheiro, saí de baixo! É o velho hábito de não dar o braço a torcer independente das provas e da cena do crime. Lembro certa vez em uma discussão com minha primeira namorada a respeito de eu ter sido visto em uma festa no dia em que completávamos um ano de namoro.”Não era eu”, tentava bravamente argumentar com Jaqueline que não poderia me ouvir, pois bradava no corredor do seu prédio que por estar em reforma ecoava ainda mais forte. “Eu te vi na festa, vais querer me enganar assim mesmo”. Desesperado por me ver cercado e praticamente sem saída, lancei mão de mão de minha última cartada fazendo jus a minha carapaça cefálica:” Vais acreditar mais nos teus olhos do que em mim?”. E desde esse dia fatídico nunca mais vi Jaqueline que supus tempos depois não sofria de nenhum problema oftalmológico muito grave… Como disse há algumas linhas acima, não volto atrás nem sob tortura! Ou pelo menos não costumava voltar… Após estes dias recheados de ovos de chocolate obriguei-me a rever certos conceitos. Já passava das 20:00 quando decidi ligar para minha assassina, digo noiva. “Estou quase chegando”. Havia saído às 14:00 e na pior das hipóteses levaria 4 horas. Levei quase 8. Um forte bloqueio policial na pista impedia os carros de avançar sobre a barricada montada. Os motoristas eram obrigados a descer dos carros e passar por uma revista minuciosa que lembrava os tempos da Faixa de Gaza. Era algo até então impossível de acontecer, pensava eu, nesta localização geográfica. Cães farejadores se alvoroçavam para dentro dos carros (um deles inclusive deixou uma delicada marca de seus caninos no encosto de meu banco traseiro…) na tentativa de encontrar sabe lá Deus o quê. Por alguns segundos pensei que estivesse dormido ao volante e estava sonhando. Ou será que estava morto e existia blitz também no céu? Fiz de tudo para acordar deste pesadelo, mas a única coisa que consegui horas depois foi uma multa por estar com o extintor de incêndio vencido! E pasmem: os ônibus tinham passagem livre! Por quê? Não faço a menor idéia. Desconfiei fortemente que minha noiva tinha encomendado tudo isso. Ela, até onde sabia, não tinha qualquer ligação com a polícia ou com empresas de transporte rodoviário. Fiquei com tanta raiva de tudo aquilo que minha vontade era voltar para casa e pegar o próximo ônibus com destino a metrópole. Provavelmente chegaria com diferença de poucas horas de minha atual situação. Mas fazer isso seria voltar atrás. E isso nunca, jamais! Já perto das 22:00, estaciono o carro na garagem do prédio de Luiza já enjoado pelo forte cheiro de cachorro molhado vindo da parte traseira do carro. Subi vagarosamente as escadas pensando o que diria ao chegar aquele horário para ouvir menos. Ao abrir a porta, a única frase que tive força de proferir antes de cair em sono profundo foi: “Ok, ok, da próxima vez venho de madrugada pelo menor movimento”.

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“A beleza salvará o mundo”. Talvez nunca esta pretensiosa frase de Dostoiewski tenha feito tanto sentido para mim como no dia de hoje. Apreciador incansável das obras deste que foi um dos mais inovadores artistas de todos os tempos, nunca pensei que um dia fosse mergulhar nas profundezas de suas idéias de maneira tão intensa e fascinante. Desde minha apresentação a este autor, no magnífico Crime e Castigo, modifiquei a maneira de enxergar alguns aspectos de nossa ínfima e curta existência. Vivi como se fosse o próprio Raskólnikov a tortura e angústia que foi seguir com sua vida após o assassinato da velha agiota e, inevitavelmente, de sua irmã Lizavéta (tamanha é minha convicção de que sua vida não poderia ter sido poupada…). A necessidade em fazer algo importante de sua vida mesmo que seja ser reconhecido por um crime coloca-me em uma intensa sintonia com o personagem durante todo o livro o que o torna tão fascinante e aterrador ao mesmo tempo. Voltando ao início do texto (e ao motivo que me fez escrevê-lo), deparei-me com o verdadeiro sentido de sua frase durante uma garfada e outra de um espaguete a bolonhesa feito as pressas em virtude do adiantado da hora (tenho me deparado frequentemente com situações como essa em que o tempo parece não ser suficiente para deglutir calmamente uma boa refeição). Motivado pela grade de programação da Rede Globo que mostrava, no exato momento em que me esforçava para enrolar o macarrão com o garfo apoiado na colher (aprendi a comer massa de colher com minha excelentíssima esposa Madonna Mia) um programa de auditório onde Zeca Camargo entrevistava Claúdia Raia. Crendo ser uma ameaça à vida no Planeta Terra troquei rapidamente de canal e encontrei Isadora Williams, a única atleta brasileira na história das Olimpíadas de Inverno a pisar em uma pista de gelo. Não precisei de mais nada. Nem de massa, nem de garfo, muito menos de colher. Senti uma intensa ardência no nariz e um emaranhado de fios na garganta que nada tinha a ver com o meu almoço quando vi aquela menina deslumbrante que levava a bandeira do Brasil estampada ao lado de seu vestido. Ao som de Dark Eyes, famosa canção russa, Isadora parecia flutuar na pista. Foram vários saltos e piruetas até o aplauso final de uma multidão que já se encontrava de pé (incluindo eu que me mantinha petrificado em frente ao televisor com alguns fios de macarrão pendendo ao lado da boca). Pensei em tudo que essa menina de apenas 18 anos deveria ter passado para estar hoje em um lugar onde brasileiro algum havia pisado em toda a história das Olimpíadas. Em um país onde o que dita as regras é o futebol, com patrocínios estratosféricos do governo federal para construção de estádios e tudo aquilo que lembrar o slogan “Copa do Mundo”, imagino a dificuldade que Isadora deve ter encontrado para conseguir um patins. A cena prosseguiu com um abraço de seu treinador e um não muito esperançoso sorriso da atleta que para mim era a maior de todos os tempos. 40.37 surgiu na tela e o que se viu em seguida foi um total desapontamento de todos que cercavam Isadora. Para quem nunca conseguiu se erguer do chão com um patins nos pés acreditei que a nota era excelente, apenas 9.63 pontos da nota máxima. Mas não era. Isadora não estava classificada nem entre as 24 melhores e ficou fora da grande final. Mas isso era o menor dos problemas. Para mim, claro. Naqueles poucos instantes em frente a televisão fui salvo. Salvo pela música escolhida para apresentação. Salvo pela bandeira brasileira que deslizava na neve. Salvo pela beleza e pela determinação que jorrava dos olhos de Isadora. Agradeci a menina que naquela tarde de quarta-feira salvou o meu mundo e o de todos nós brasileiros.

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A morte não tira férias

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Final do mês de janeiro. Mais um término de um longo dia de trabalho. Chego em casa procurando espaço entre as roupas jogadas na sala na semana anterior e as caixas de papelão que estão sendo usadas como depósito temporário para os materiais da reforma do consultório. Enxergo um pedaço de sofá e desabo imaginando que ficarei por longas horas naquela posição. Ligo a televisão. “Acidente mata duas pessoas após queda de avião do sul do Estado”. Procuro me desligar da notícia como todo bom passageiro Starline que depende deste tipo de transporte todos os anos supondo manter a ingênua esperança de que não enxergando acidentes não corro riscos no ar. Digito a senha de destravamento da tela de meu celular para tentar deslocar meus pensamentos para algo mais leve. Encontro um vídeo, destacado por internautas, sobre um pedido de casamento feito por um piloto de ultra-leve durante um vôo com a namorada. Até então algo corriqueiro na rede a não ser pelo grande número de visualizações. Percebo em um dos comentários logo em seguida o motivo de tanta procura: “Ao mesmo tempo lindo e trágico”. Meus pensamentos retrocedem a milhas de velocidade. Minha expressão é de espanto e assombro, comum em todos aqueles que buscam conexões em fatos isolados que insistem em parecer interligados. Avião, queda, número de visualizações, lindo, trágico. A matéria na televisão!! Era o mesmo avião. O rapaz de apenas 22 anos que havia feito um pedido de casamento a noiva há um ano encontra-se naquele mesmo avião em baixo de uma pilha de ferros distorcidos!! Senti meu estômago embrulhar e levantei do sofá bem antes do tempo previsto. Aquela sensação estranha, de enjôo, de sufocamento. O que era aquilo? Aviões caem todo dia. Está bem, confesso que sempre me causou mal-estar saber sobre a existência desta possibilidade, pois também faço uso deles (muito a contra-gosto por sinal!!). Porém neste dia foi diferente. Não só para mim, mas para as 254.788 pessoas que assistiram ao vídeo. Era uma notícia difícil de escutar…
Invariavelmente temos dificuldade em lidar com a morte. Uns mais outros mais ainda. Principalmente nesta situação onde estão envolvidas pessoas jovens, saudáveis, bonitas, apaixonadas. A maneira como um acidente como este nos toca demonstra que nossas lindas e apaixonadas vidas não estão imunes a tragédias. Podemos acordar presos a ferragens. Se acontece com um casal lindo e feliz como este imagina conosco que reclamamos por estender um pouco mais a jornada de trabalho diária ou por não encontrar espaço para sentar em um sofá tomado de bugigangas. No meu caso, a situação ainda é mais delicada. Estou muito próximo a eles. Não piloto avião e não conheço nenhum dos dois. Mas sonho alto. Vôo diariamente em pensamentos. Vejo-me próximo também ao momento de pedir em noivado minha linda mulher. E tenho medo da morte. Principalmente desta morte que chega fora da ordem cronológica dos fatos, da vida, de tudo. Que surpreende por sua brutalidade, por sua covardia, por seu descaso com o amor. Somos invadidos a todo instante por sua presença e tentamos correr por fora da pista na vã idéia de confundi-la. O que fazer a esse respeito? Não andar de avião? Não ligar a televisão? Não correr? Não creio que ajude. Precisamos de coisas belas, de amor, de pedidos de casamento seja em aviões, no restaurante com os amigos, na praia, em frente ao pôr do sol. Precisamos manter o coração sempre quente para que a morte não esfrie qualquer possibilidade de alçarmos novos vôos em direção à vida.

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A lição de seu Juca

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04:30 a.m. É a hora que toca o despertador na casa do seu Juca. Por estar no auge de seus 3/4 de século e por sofrer de uma artrose que castiga quase todas as juntas de seu corpo, seu Juca levanta com dificuldade de sua cama, veste os chinelos surrados que ganhou da esposa oito anos antes em comemoração às suas bodas de ouro e se dirige ao banheiro para iniciar os preparativos para mais um longo dia de trabalho. Assim que termina sua higiene matinal, acorda a esposa Mercedes com um beijo e se encaminha para a cozinha para preparar o café. A exatos 40 minutos após despertar, seu Juca está vestido em frente ao portão de sua casa acenando para a esposa antes de pegar as duas conduções que o levarão ao seu local de trabalho. Antes das 07:00 da manhã já está a postos em frente ao chafariz principal da cidade que traz a imagem de Bento Gonçalves montado em seu imponente cavalo. Seu Juca bem que tentou se aventurar em outras profissões ao longo da vida: carpinteiro, ajudante de construção civil, operador de máquinas, borracheiro… Mas foi com o carrinho de pipocas que encontrou sua maior realização. Aos 10 anos de idade Juquinha, como era chamado pela família, já fazia este mesmo trajeto com o pai Irineu que ensinou tudo o que ele sabe sobre a arte de vender pipocas. Temperatura do óleo, qualidade do milho, material da panela e do recipiente que as recebe depois de prontas, local apropriado para a venda, etc. Tudo nos mínimos detalhes. Seu Juca lembra com tristeza do trágico dia do falecimento do pai após um carro desgovernado ter o atropelado enquanto voltava para casa com seu carrinho de pipoca. Depois disto, por precaução seu Juca mantém o carrinho acorrentado em uma estrutura de ferro no local de trabalho. Cinquenta anos com a mesma rotina! Sem faltar um único dia!! O que leva alguém a persistir na mesma profissão por tanto tempo? Você deve estar se perguntando: quem em seu juízo perfeito come pipoca às 07:00 da manhã? Por que então chegar tão cedo? Nas palavras de Seu Juca, “Quanto mais tempo estiver na praça, mais serei lembrado. E mais pipoca será vendida!”. Fico pensando nos milhares de trabalhadores do nosso país que saem de casa muito antes do sol nascer para trabalhar e passam anos e anos nesta mesma rotina. Sem dúvida muitos por necessidade em receber o salário no final do mês. Mas e seu Juca? O que o mantém com essa extrema disposição aos 75 anos de idade? Certa vez, ainda nos tempos da graduação, ouvi de um paciente que internara no hospital após uma recidiva de um câncer de intestino algo que jamais esquecerei. Entre uma pergunta e outra, seu Antenor Santos da Silva (continuo com essa estranha sensibilidade na memória com alguns pacientes de lembrar nome, sobrenome, filiação, endereço…) disse-me: “Faça o que você ama e nunca terá que trabalhar na vida!”. Fiquei pensando nesta frase por dias a fios tentando absorver a magia por detrás daquelas palavras. Como passamos grande parte de nossas vidas trabalhando então que seja com algo que realmente amamos. Mas por que é tão difícil trabalhar com amor? E para o seu Juca por que é tão fácil? Muito provavelmente por que ele não se preocupou com o que os vizinhos iriam pensar ao vê-lo empurrando um carrinho de pipocas em pleno sábado, não pensou em impressionar a garota do 71 conhecida no bairro pelos seus lindos pares de pernas, não se interessou em comprar uma casa maior, pois não há mais espaço na anterior para acomodar tanto consumo. A história de Seu Juca serve como exemplo para todos aqueles que buscam um sentido para o trabalho e um significado para a vida. Precisamos urgentemente comprar menos gravatas e comer mais pipocas.

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“Vamos lá, só mais pouco! Força!” Essa simples frase pode ter muitos significados. Pode se referir ao ansioso marido que acompanha a esposa na sala de parto após 2 anos de tentativas frustradas para engravidar do primeiro filho. Ou ao pai que fala sozinho em voz baixa em frente ao prédio onde a filha faz a quinta prova consecutiva para o vestibular de medicina. Ou talvez possa ser a súplica de um neto que vê seu querido avô cercado por tubos e aparelhos após descobrir um tumor de intestino já em estágio avançado. Mas não. Era o meu pensamento ao avistar logo a frente um Mercedes carregado de madeira subindo a auto-estrada 295 no exato momento em que eu iniciava uma ultrapassagem. De uma hora para outra nos colocamos em situações de vulnerabilidade onde um segundo pode ser tempo demais. A sensação é que nessas frações de tempo enxergamos a vida passar devagar. Lembramos da infância, sentimos o cheiro do bolo de fubá recém saído do forno da vó Silvia, o colo macio da mãe que chega cansada do trabalho e ainda assim tem paciência para contar histórias, o primeiro gol no quintal comemorado com o pai, a primeira paixão pela menina da escola 10 anos mais velha. E só o que torcemos nesta hora é para que dê tempo. Tempo para sermos quem sempre sonhamos, para pedir aquela linda mulher em casamento, para conseguir ultrapassar o caminhão-cegonha de 22,5m de comprimento. Desta vez deu tempo.
Vinte minutos a frente sou despertado novamente por sinais de luzes dos carros que se aproximavam na direção oposta. Polícia pensei. É esperado para uma quinta-feira véspera de feriado. Engarrafamento. Tudo dentro da normalidade. Geralmente é consequência do tempo perdido para mostrar ao guarda os documentos do automóvel e a carteira de habilitação. Pessoas saíam apressadas de seus carros em direção ao início do bloqueio. Algo não estava bem. Principalmente pela expressão de alguns motoristas que retornavam do local da paralisação com lágrimas no rosto e um desespero que tomou conta de mim. Pedi a Deus que trouxesse um guarda mal-encarado de alguma blitz para que eu mostrasse meus documentos já em mãos que encharcavam de suor o banco do carro. Mas a sirene que ouvia não era da polícia. Logo a frente notei um automóvel que parecia de brinquedo em função da posição e do tamanho que havia ficado. Quanto mais me aproximava do local mais detalhes da cena teimavam em desviar meu pescoço e fixar meus olhos na direção da multidão. Tesouras gigantes no chão provavelmente usadas para liberar passageiros das ferragens, um homem por volta dos 40 anos desesperado com as mãos na cabeça ao lado de um carro que havia sido arremessado da estrada, um bombeiro organizando o trânsito ao mesmo tempo em que enxugava timidamente lágrimas que caíam dos olhos. E um corpo protegido dos olhares curiosos por uma lona branca. Segui em frente para sair dali o mais rápido possível. Passei boa parte do dia com um mal-estar na região do peito e do estômago (deve existir alguma conexão neuroendocrinoespiritual que justifique essa interdependência de sintomas destes dois locais do corpo). Não conseguia tirar a cena da minha cabeça. Pensei no meu corpo coberto com uma lona minutos antes e um caminhão Mercedes em chamas na pista. Quem define quem será poupado? De quanto tempo precisamos para ultrapassar? Vai ser você que não vencerá a próxima curva? Ou eu? Essa inconstância da vida é realmente necessária? Infelizmente sim! Necessária e fundamental para nos fazer pensar. Pensar em colocar o cinto antes dar partida no carro; pensar em não ultrapassar na faixa contínua; pensar em não avançar além dos 100km/h; pensar que não existe máquina perfeita. Máquina falha, sai da pista, capota. Força. Vamos lá. Só mais um pouco…

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Solteiro sim! Até quando?

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Era para ser mais um amistoso normal entre o time dos solteiros e dos casados que acontece uma vez por ano no encontro da família Sartori no Sitio Alto interior do Rio Grande do Sul. Sempre permeado de muitas brincadeiras e gozações o jogo é um evento na família e na região. Milhares de curiosos se aglomeram em torno de um campo que durante o ano serve como pastagem para o gado e que no mês de dezembro recebe cuidados especiais para o grande evento. A torcida é das mais fiéis possíveis. Faixas com os dizeres “Casa Carniça. Teu corpo não é mais de solteiro faz anos” e “Jamanta, querido, Ana Lucia quer casar contigo” são comuns. No último ano aconteceu o batismo de Carlinhos, recém chegado ao time dos desesperados, digo casados. Cada integrante novo é submetido a, por assim dizer, um “teste” antes de receber a faixa com o seu mais novo estado civil: um corredor polonês cercado de solteiros sedentos por vingança e retaliação com toalhas King molhadas prontas para reverberar no corpo do atual vira-casaca. Até aí tudo correndo como o esperado. Em seguida, fui até o centro do campo como bom capitão dos solteiros para iniciarmos logo, pois já haviam esposas na beira do campo gritando aos quatro ventos que o Jeninho não iria se alimentar sem o pai estar na cozinha ao seu lado e outras dando dicas de como não se arrebentar por inteiro tendo a maior circunferência corporal situada no abdômen. “Olha pra frente e não corre Mathias! Fica parado!” (excelente dica por sinal tratando-se de um jogo de futebol…). Aliás, todos os anos era preciso completar o time dos casados com solteiros em função destas pequenas peculiaridades…
“Toca essa bola matungo” foi o que disse carinhosamente meu querido lateral esquerdo após eu driblar o Latércio, casado inveterado desde os 19 anos (e pasmem: com a mesma esposa!), e avançar perigosamente em direção ao gol adversário. Mas o que me chamou a atenção mesmo foi o fato ocorrido aos 30 minutos de jogo quando uma bola lançada da intermediária veio em minha direção. Iniciei a arrancada, já acostumado a calcular a velocidade (v = delta s/delta t ) desde os tempos do colégio pensando em como iria deslocar o goleiro antes de estufar a rede. Mas não cheguei nem perto da bola. Satanás, o temido zagueiro do time adversário casado com a “Chaveirinho” (apelido em função do contraste gritante nas fotos em que aparece ao lado do marido) dominou a bola e sorriu: “Quê? Tem certeza que tu ta jogando no time certo? Essa mobilidade e desenvoltura ta cheirando a casório!!! Ahahahaha…” Como era possível? Justo eu que sempre fui o mais presente nas jogadas, que participava de todos os ataques e ainda ajudava na defesa não consegui chegar naquela bola? Será que as ameaças de meu afetuoso sogro (a última a qual aproveitei para aprender a limpar um revólver calibre 38) exigindo meu posicionamento após ínfimos 8 anos de namoro com sua primogênita querida fez com que a maldição dos casados se abatesse sobre mim? Não era possível. Pedi para ser substituído, pois precisava refletir sobre aquilo tudo. Chamaram um garoto, filho do tio Cleber, famoso e único médico da cidade, que deveria ter nascido no século XXI a julgar pela velocidade com que chegou ao outro lado campo. Ah, bons tempos esses em que não lembrávamos que o ser humano possui coluna vertebral mesmo jogando 3 partidas em sequência… Tempo em que esperávamos ansiosos para ser chamados na beira do campo e participar de qualquer jogo (hoje avaliamos se vale a pena jogar pelo número de carecas e o pelo tamanho das barrigas dos atletas em campo), que íamos de virada para a faculdade e ainda pegávamos a balada na mesma noite (Virgem Santa Madalena!!!).
Ao olhar ao meu redor fiquei ainda mais apavorado. Estava cercado de casados, todos sentados ou deitados no chão com a barriga para fora da camisa GG surrada do Natal de 2012, respirando com um esforço que no meu tempo de médico (psiquiatra habita um mundo além do portal da medicina…) solicitaria tão logo possível um laringoscópico e um tubo para a intubação imediata!
Será que havia chegado o fim dos tempos e aquela bola era o sinal que estava faltando para me convencer? Já conseguia ouvir uma voz ao meu ouvido dizendo “aceita que dói menos”. Mas na verdade percebi que o som vinha da boca de Satanás que afastava uma bola perigosíssima da defesa olhando em minha direção.
Achei melhor deitar meu corpo cansado na grama, afrouxar um pouco a camisa que dificultava minha respiração e pensar com calma sobre a possibilidade de no próximo ano aguentar o peso de 11 toalhas encharcadas sobre minha cabeça…

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